setembro 29, 2010

Sobre Café e Cigarros

Sei lá. Certas concessões só mesmo o coração pode fazer: para um hábil cãozinho, o retrátil pão, uma tigela de água e as verdades morredouras que guardamos no armário de nossas idéias e não dividimos com os outros. Aquelas verdades "maduras", amadurecidas com os maços de cigarros à porta do quintal, chinelo de dedo, sorriso tentado, mas preso pela armação da boca, firme, severa, cortante, oca. Eu me sinto como você, eu também sou filho de deus e tenho um apanhado de idéias "maduras", faço o meu próprio café, trilho os meus próprios caminhos, sei pegar um busão para chegar ou sair da capital. Mesmo na faculdade, eu e você somos independentes, únicos. Todos fumam, cada um à sua maneira. Não é? Vodka: verdade. Cigarro: verdade. Roupa nova, namoda: verdade. Roupa velha, atemporal quando me da na telha: verdade. O que eu penso da minha família: verdade. Tudo o que acho que ela deveria pensar de mim: verdade. O que eu acho engraçado é como nó fazemos essas ideias, essas verdades, como elas crescem em nós e se enraízam. Por exemplo, você estando à porta da sua casa, olhando o céu repleto de estrelas, olha para o chinelo de dedos, para os dedos, para a rua vazia, para o céu. O cigarro na mão. Daí passa alguém na rua, não importa se punk, homo, buda, você é um ser reflexivo que respeita qualquer tipo de manifestação cultural, religiosa, filosófica, enfim. Daí você de cara já pensa: é punk, homo, é buda! Mas você pensa em seguida: eu nada tenho a ver com isso. Mas você se lembra de um conhecido, e das impressões que te deixou, boas ou más, neutras, sem cheiro, o que for, e fica pensando, e arma na boca um sorriso, mas não sorri. Ou se mantém na concentração. Alguma coisa sedimentada em você diz que você não deve julgar, ninguém deve julgar, mas essa mesma coisa sedimentada em você coloca em algum lugar da sua trajetóriaesse buda carequinha, um colega seu de colégio, faculdade, trabalho, um desenho qualquer, um filme. Você caminha por sua memória e percebe como sua identidade é consolidada, como você não se identifica com o punk, nem com o homo, nem com o buda, e que você é de fato um ser único, inteiro, original. No  beco de suas idéias, você poderia morrer naquele instante, e ser apenas a morte de mais um ser original de fábrica. Você tem certeza que as pessoas em sua casa, lá na sala de tv, possivelmente não concordem inteiramente com você. Você não vê em si muita beleza. Você é um apanhado de tempo acumulado e de verdades amadurecidas com um cigarro na mão. Você tem certeza disso tudo, tanta certeza que você confere milimetricamente sua vida para se provar inteiramente coerente. Você é coerente, tem verdades amadurecidas, não vai mudar. Você não quer e tem certeza de que não vai mudar. Ninguém pode te mudar,você pensa. Só a vida, assim, num futuro muito remoto, incerto, impreciso, mais impreciso que a fumaça do seu cigarro, só a vida num turbilhão poderia mudar alguma coisa. Então você pensa um pouco e connclui que, mesmo mudando muita coisa na sua vida, a vida em si não poderia provocar uma mudança em você. Você tem certeza. Você compra vodka, fuma cigarros, frequenta a badalada sociedade de seu círculo de conhecidos, e viaja pra praia. Você viaja pra praia e faz as mesmas coisas, pratica as mesmas verdades, que você pratica em sua cidade habitual. Bebe vodka, vai ao bar, fuma, passa mal, lê uma revista, compra roupas, assiste televisão, usa chinelo de dedo, sapato apertado, vai ao bar, fuma, toma banho quente, só banho quente. Fica de mal-humor se algum plano de turismo se acena impraticável, mas fuma um cigarro e tudo volta aos eixos. É mais uma história pra contar. Você sabe. Você, aliás, amadureceu ainda mais aquelas verdades amadurecidas. O céu é estrela cadente, há fumaça nas coisas e no teu cigarro. O quintal e a rua ascendem rebocando a paisagem dos teus pensamentos. Entretudo, você ainda se alegra vendo o cachorrinho beber àgua, alisa seu pêlo rasteiro de vira-lata, você finalmente consegue sorrir. O buda já está longe, mas você o vê ascender um cigarro antes de dobrar o outro quarteirão. Todos nós fimamos, afinal, você pensa. Cada um a sua maneira. Sei lá.


Luis Gustavo Cardoso in revista E Vamos À Luta

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