novembro 24, 2010

Capitulo IV - A Vingança


Cerca de dois meses se passaram após Joe contar seu plano de vingança ao velho Sam. Dois meses de espera até que chegasse o  momento certo para desferir o golpe que acabaria com Toni.

Joe queria que o italiano sentisse sua dor. Queria ver o medo em seus olhos, e sabia que iria gostar disso... Sentiria prazer... Muito prazer em torcer o pescoço do italiano...

Joe Lynch era conhecido por ser um homem pacífico e trabalhador. Um homem que amava a vida e suas belezas, principalmente Anna, sua esposa. O que ele tinha agora? Nada. O bem mais preciosoque um homem pode ter, foi-lhe tirado brutalmente por uma pessoa fria e cruel. A alegria foi-se embora, juntamente com o ultimo suspiro de vida de Anna.

Todos os bons momentos, as carícias e gracejos, tudo o que havia passado ao lado dela, nada mais eram que meras lembranças de um tempo que não volta... Nunca voltará...

Embora quisesse vingar a morte de Anna, logo após o assassinato, o jovem sabia que deveria esperar pacientemente pelo momento certo. Sabia que, assim como ela prometera, tudo daria certo.

Dois meses. Dois longos e agoniantes meses que passaram lentamente, após a morte de Anna. Mas aquela noite seria "A" noite. Joe poderia vingar o sangue inocente que fora derramado.

Dois meses de cálculos, de ponderações, de considerações sobre as oportunidades, as chances, as possibilidades de falha... A noite chegara. Toni pagaria pela vida de Anna com sua propria.

O plano era deveras simples. A dor seria enormemente grande.

Fredo, o sobrinho de Toni, era um apostador azarão. Algumas vezes ganhava muito dinheiro fazendo apostas de alto risco, mas  na maioria delas, nõ ganhava mais que alguns trocados para o café e o vinho. Toni gostave dele, apesar de ser um completo idiota. Gostava muito e Joe sabia disso. Usaria isso para sua vingança!

Às 23:00, após sair do clube onde fazia suas apostas, Fredo foi abordado por um cara chamado Robert O'Hara, que o persuadiu a entrar no carro. Indo em direção ao FourLeaf, O'Hara pergunta se Fredo conheceu Anna.

- Anna? Que Anna?? Nunca ouvi falar dessa tal de Anna...
- Não conhece? Então vai fazer esse jogo de "não-sei-quem-é" e vai ficar embaçando? - Diz O'Hara ao desferir um tapa na cara de Fredo.
- Mas eu realmente não sei do que você está falando!

Chegaram ao pub. A limosine para e Fredo é empurrado para fora dela. Após a ordem, entra no bar e se depara com Joe sentado ao balcão, tomando uma dose de um legitimo whisky escocês, da reserva do velho Sam.

Joe se aproxima e, olhando nos olhos de Fredo, Dá-lhe um soco na cara e logo após, um no estomago.

- Vocês vão pagar por isso, bastardos filhos de uma puta!!! Vão pagar por tudo o que fizeram, por terem matado Anna... Vão pagar por toda a dor que me fizeram passar! - berrava JOe, olhando o italiano caído no chão, com o sangue escorrendo da boca e do nariz.

Colocaram-no sentado em uma cadeira no centro do bar mal iluminado pelas lampadas fracas e cheio de fumaça de cigarros e charutos. O interrogatóri começou.

- Quem a matou? Hein? Fale desgraçado! - outro soco em Fredo, que sangrava ainda mais.
- Eu não sei do que estão fal... - foi interrompido por um novo golpe.
- Sei que pode não ter sido você quem a matou, mas sabe quem foi! Você sabe que seu tio, o verme do seu tio, foi quem mandou matá-la...

Joe estava espumando de raiva e ódio. Seu rosto e a pele de seu pescoço estavam vermelhas de tanto gritar raivosamente e havia uma enorme veia saltada em sua têmpora.

Após horas de interrogatório, Joe chega à conclusão de que Fredo é realmente um idiota e não sabe de nada. Decide então ir falar diretamente com Toni. Dirigindo freneticamente pelo bairro italiano, ele para à entrada da cantina de Toni e entra após ser revistado.

- Olá senhor Lynch, em que posso ajudá-lo?
- Não me venha com essa de "em que posso ajudá-lo" seu verme maldito...
- Está assim por causa da morte de sua esposa, não é? - interrompeu Toni - Minhas condolências, sr, Lynch.
- Mas e mesmo um filho da puta, não é? Manda matar minha Anna e ainda tem a cara de pau de me dar as condolências...
- Sr. Lynch, eu não matei, nem mandei matar sua esposa. Ela era uma mulher muito bonita, na minha opinião. O problema foi entre nós dois. Ela não teve nada a ver com isso, certo? VOCÊ estava me devendo, não é sr. Lynch? Eu não tinha nenhum problema com ela.
- Não venha com essas histórias pra cima de mim, Toni...
- Não são histórias Joe, posso te chamar de Joe, certo? São fatos! Há alguns anos, eu tive um desentendimento com o velho Sam O'Neil. Na época eramos amigos e tinhasmos um acordo comercial que favorecia ambos os bairros, mas ele decidiu que poderia levar uma parte maior nos lucros às minhas custas. Quem mandou matar Anna, foi o velho Sam.

Joe ficou estupefato com as palavras proferidas. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Não queria acreditar. Será que Toni estaria falando a verdade? Ou será que queria provocar uma confusão e tirar toda a suspeita de si?

- Ele quer que você me mate Joe, para poder ficar com minha parte no acordo. Mesmo que tenha sido há muito tempo, o acordo ainda dava lucros para ambas as partes.
- É mentira... VOCÊ ESTÁ MENTINDO!!! - berrou Joe, quase explodindo de raiva.
- Vá embora Joe... Pergunte ao velho sobre o nosso acordo e verá se eu estou realmente mentindo.

-x-

Saudações, viajante...
Peço descupas pela ausência, mas está uma correria com a faculdade e o trampo... Tentarei não ficar tanto tempo ausente. 
Sem mais delongas, despeço-me.


Paz e Força Sempre!

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novembro 06, 2010

Venha Ver O Pôr-do-Sol


Saúdo-vos leitores e colaboradores.
Sem muito tempo, deixo-os com um conto de L.F.T. que, em minha humilde opinião, é muito triste, bonito e, sobretudo, SURPREENDENTE!
Sem mais delongas, despeço-me.

-x-



Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.


Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.

- Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima

Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.

- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?

- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!

- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.

- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?

- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.

Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...

- E você acha que eu iria?

- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.

- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

- Mas eu pago.

- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.

- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...

O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.

- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.

- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

- Ele é tão rico assim?

- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.

- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?

- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora.

- Mais alguns passos...

- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

- Sua prima também?

- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

- Vocês se amaram?

- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o

- Eu gostei de você, Ricardo.

- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

- Esfriou, não? Vamos embora.

- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.

- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?

- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

- E lá embaixo?

- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

- Todas estas gavetas estão cheias?

- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

- Vamos, Ricardo, vamos.

- Você está com medo?

- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:

- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.

- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.

- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

- Boa noite, Raquel.

- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.

- Não, não...

Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.

- Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

- Não...

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

- NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

Lygia Fagundes Telles

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